sexta-feira, 2 de novembro de 2018

UM POEMA DERRAMADO NO ASFALTO DA RUA

Devo dizer, com o perdão dos progressistas, que o betume negro veio empalidecer a poesia das ruas descalças. O antipoético do retilíneo, do nível e do crível estão descritos no traço das ruas modernas. O antipoético escreve-se ainda nos peitos cheios, inflados de progresso dos passantes, vazios de si. Reescreve-se o antipoético no inominável da massa compacta e nas poucas alegrias cinzas de algum rosto que se descobre do “entemesmismo” progressista. Mas...Foi há anos. Na minha rua. A emoção me veio em grossas labaredas para acontecer aquela frialdade minha, de homem que já resvalava cabeça e coração no teto de dois mil anos, amontoados todos num monturo de muita história e poucas histórias. E ela me trouxe a certeza de que, na superfície árida e ressequida da alma humana, haverá sempre fendas e e gretas por onde possa vicejar alguma rima,  alguma poesia. Mas neste dia, aquele da minha rua, foi uma página inteira de poema estendida no asfalto. A lua ali. Não uma lua qualquer das quatro. Cheia. Lua cheia! Todos sabemos que as luas outras quaisquer se grudam lá em cima, fixam no céu, distantes. A Cheia não. Ela fica e ficava ali, imensa, dependurada no barbante das nuvens, ali em cima da gente, luminosa. Nossa!
 Naquele começo de noite, pegando o meio-fio da rua, crianças, só moleques. Em meio ao bulício, uma vara de bambu desse tamanho!, um bambu inteiro. Um carro vem vindo. Apenas o motorista. Junto à molecada buliçosa – aquele bruto varão erguido, a lua Cheia ali em cima deles – o motorista breca, sai do carro vociferando: “Molecada fiadaputa! Larga essa vara aí, cambada! Joga fora essa vara! Que brincadeira mais besta! Não tão vendo que vocês vão furar a lua?” 
 Volta para o carro, ainda o ar sisudo, o riso contido. Entre a molecada, uma ou outra risadinha miúda e fiapos de sons guturais trincam aquele silêncio de vidro, que está para se estilhaçar. Lá no carro, uma estrepitosa gargalhada. E o coro de gargalhadas ali fora, acompanhado do “valeu, tio!” que soou vigoroso em cada garganta, quando o motorista se arrancava dali, rindo e acenando para aquelas crianças. Pausa. É preciso parar depois de uma cena dessa! Irrepetível! E se Camões escreveu um poema mais belo que esse, desse anônimo condutor de veículos – desculpe-me o poeta de “alma minha gentil que te partiste” – eu não li o mais belo poema de Camões.
Alésso Fuzari é professor aposentado

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